Amália canta no Argentina (teatro de ópera) em Roma. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
| Em 1950 organizam-se vários espectáculos de apoio ao programa económico para restaurar uma Europa em ruínas. É o célebre plano Marshall. Na cidade martirizada de Berlim, os primeiros espectáculos. Participam todos os países que aderiram a este plano americano. A escolha recai sobre cantores de música clássica, mas Portugal não tem cantores líricos de nomeada. Amália é a única artista portuguesa conhecida: «Como ouviram alguns discos meus preferiram escolher-me». Canta os poetas portugueses Pedro Homem de Mello e David Mourão Ferreira. A Irlanda, país onde a música popular tem fortes raízes, é também representada por cantores ligeiros. Em Roma Amália quebra um tabu. Canta no Argentina, um teatro de Ópera. Neste espectáculo participa a cantora lírica Maria Caniglia, o violinista Jacques Thibault e o tenor Fiorenzo Tasso, acompanhados por uma orquestra sinfónica. O contraste é grande. Amália é a única cantora ligeira. Treme como varas verdes. Está sozinha com a guitarra portuguesa de Raul Nery e a viola de Santos Moreira: «Três gatos pingados que não sabiam nada de música a tocarem ao pé de uma orquestra sinfónica, enorme!». Quando entra no palco tem uma tal cara de medo, que nas primeiras filas pessoas olham-na com ternura: «Acho que tive o público comigo, ainda antes de começar». O sucesso é grande. Sai do palco, começa a rir e a chorar ao mesmo tempo. «Tive o único chilique da minha vida. Era tudo no palco com leques, à minha roda, a dizerem. Perchè píangere? Un sucesso! Un trionfo! Perchè píangere? E eu ao mesmo tempo chorava, ria, ria. Foi um tal medo…porque os fadistas dantes tinham muito mais complexos de inferioridade do que agora. Eu é que tirei os complexos ao fado. Nessa noite, sem querer, consegui muito. Foi um espectáculo extraordinário para mim, porque as críticas foram formidáveis. À saída, toda a gente estava à minha espera, a gritar: Brava!Brava!Brava!» Numa da sua estadas em Nova Iorque, Danny Kaye convida-a para entrar num espectáculo com ele na Broadway: «Quem sabe, se eu tivesse ido, correndo-me bem as coisas, como sempre me correram em toda a parte, talvez eu tivesse partido dali para uma coisa importante. Eu podia ter sido muita coisa se não fosse aquilo que sou. Mas nesta altura não era capaz de cantar ao lado de Kaye, embora tivéssemos ficado grandes amigos». Em 1954 faz uma digressão pelo México. Uma jornalista famosa de Hollywood, Hedda Hopper quer que ela se vista de branco, que se decote e renuncie ao xaile preto. Quer que Amália ponha uma rosa vermelha na cabeça. Amália explica-lhe que a rosa no cabelo é para a Espanha e ela é de Portugal, de Lisboa. O seu empresário americano, Blackstone leva-a aos estúdios de Hollywood. Assiste às filmagens de “Someone At Last”, em que Judy Garland e James Mason são os protagonistas. Acha tudo muito estranho porque uma das cenas é repetida dezassete vezes, enquanto em Portugal um actor nem sequer uma vez pode enganar-se, porque não há filme suficiente para repetir a cena. Conhece assim James Mason: «Uma portuguesa que ia comigo é que ficou a amarinhar pelas árvores por ter visto James Mason. Até pedi desculpa ao homem e disse-lhe que em Portugal não éramos todos assim» conta Amália ao seu biógrafo Victor Pavão dos Santos. Neste período não fica nos Estados Unidos porque não quer. Em Nova Iorque canta pela primeira vez na televisão (na NBC), no programa do Eddie Fisher «patrocinado pela Coca-Cola, que tive que beber e não gostei nada». Grava um disco de fado e flamenco. Abrem-lhe uma conta no banco para ficar mais tempo e gravar dois álbuns, com canções de Cole Porter, Gershwin, Jerome Kern. Fica muito contente pelo convite, mas não aceita porque está farta da América: «Eu nunca trabalhei na minha vida e para fazer um álbum com canções americanas tinha de ficar ali a ensaiar, a trabalhar. Eu gosto de cantar sem estar a pensar que estou a cantar. Não sei cantar de outra maneira. E bastava-me a preocupação de estar a falar inglês para perder a espontaneidade». « É uma temperamental. Uma meridional!»- clamam uns. «É a grande intérprete da alma ibérica!» - dizem outros. Quando regressa a Lisboa é novamente convidada a cantar na embaixada portuguesa em Espanha onde «me tornei “flamengueira”. Conheci as melhores gargantas de flamenco!». Canta e sente que o fado e o flamenco têm a mesma autenticidade: «De um e de outro modo, cada um tem a sua verdade». Anos mais tarde, quando grava o disco «Fado de Portugal e Flamenco de Espanha», dá corpo ao seu iberismo.
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Amália, Manuel Alegre, Pedro Homem de Melo, David Mourão Ferreira e Alain Oulmain... Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
| Por uns - compreendida , por outros - apupada, mas a ninguém indiferente. Decide cantar o fado-canção. Encontra uma nova postura de cantar o fado, mais desabrida. Canta com entusiasmo os fados de Frederico Valério, Raul Ferrão e de Frederico de Freitas «com uma estrutura musical mais complexa, com refrão e coplas, por oposição à simplicidade estrófica dos velhos fados castiços». (Rui V. Nery) Amália dá ao fado um novo fulgor. Canta o repertório tradicional de uma forma diferente «subordinando o ritmo regular da melodia ao sabor da dicção poética, com suspensões inesperadas e acrescenta ornamentos novos, que foi a buscar às cantigas da Beira Baixa», escreve o mesmo musicólogo. Ultrapassa todas as fronteiras e preconceitos culturais. Amália tem a arte de sincretizar o que é urbano e rural, o que é popular e erudito através de uma voz de timbre único, prenhe de emoção sensual e musical. Os poetas Pedro Homem de Mello e David Mourão Ferreira passam a escrever para ela. Canta os grandes poetas da língua portuguesa, dos trovadores a Camões, de Bocage aos poetas contemporâneos guiada pela sua grande intuição. Conhece o compositor luso-francês Alain Oulmain: «Um dia estava num acampamento e levaram-me Alain Oulmain, que tinha uma música a pensar em mim, o Vagamundo. Fui ouvir e gostei. Seguiram-se outras e fui contra a maré das pessoas que estavam ao pé de mim, que achavam aquilo muito complicado. Os guitarristas de facto, tiveram de aprender aquelas harmonias novas que o Alain trazia, que não tinham nada a ver com o fado porque o fado é pobre em harmonia. O Alain nasceu no Dafundo, nasceu em Portugal, apesar de ser francês. Tem uma sensibilidade grande de artista, foi criado num certo ambiente. Depois, ouviu-me cantar, sentiu que a minha sensibilidade estava muito perto da sua. Dá-me a possibilidade de voar.» Amália tem um humor marcadamente lisboeta, construído em Alcântara, bairro predominantemente operário onde o humor corrosivo é cultivado quase como uma forma de vida. Brinca com ela própria, com o seu próprio talento. Sobre a sua primeira aparição na televisão portuguesa em 1958 conta ela ao seu biógrafo: «Andou sempre uma mosca à minha volta. Cantou melhor a mosca do que eu. Quando havia lá moscas, e acho que havia sempre, as pessoas disfarçavam. Eu, como havia a mosca, sacudi-a. E depois só se falava na mosca». Perante situações complicadas constrói a sua coragem na capacidade da resposta pronta. Quando alguém lhe fala sobre as condecorações e outras honrarias que recebera durante a ditadura, responde: «Por mim, não me levantava do meu cadeirão. Não passei pela vida, a vida é que passou por mim». Na década de 60, razões económicas e razões políticas levam os portugueses a emigrarem em massa para os países ricos da Europa. Em Angola rebenta a Guerra Colonial. Movimento estudantil contra a repressão salazarista. Muitos portugueses, opositores ao regime são obrigados ao exílio. Em Argel o poeta-exilado Manuel Alegre recebe uma carta do seu amigo Alain Oulmain pedindo-lhe autorização para Amália interpretar «Trova do vento que passa» poema que era já uma referência para a resistência anti-fascista portuguesa na voz de Adriano Correia de Oliveira. A nova versão surge no disco da Amália «Com que Voz» (1970) Em 1962 aparece o primeiro disco com músicas de Alain Oulmain e que é muito bem aceite por um público de uma elite cultural. Para alguns não é fado. Os próprios guitarristas quando tocam as coisas de Oulmain, vêem-se à nora. José Nunes dizia sempre: «Vamos às óperas». A sua grande sensibilidade artística e intuição faz com que o fado Povo que lavas no rio, um poema que Amália escolhe não sabe bem porquê, de Pedro Homem de Mello, tenha uma dimensão política. O mesmo se passa com um antigo fado do Armandinho que se torna num hino aos que se encontram presos em Peniche e que se passou a ser conhecido como o «fado de Peniche». O disco foi proibido. Para Amália quando «o cantei, aquilo era uma tristeza de amor, que é um sentimento muito mais bonito e muito mais dorido que uma ideia revolucionária. Não me passavam pela cabeça prisões.» Em 1966 está novamente nos Estados Unidos. Canta em salas normalmente vedadas à participação de cantores de música ligeira como no Lincoln Center e no Hollywood Bowl. Recebe um telefonema de Lisboa a dizer que Alain Oulmain foi preso pela PIDE. Amália dá todo o seu apoio ao amigo e tudo faz para que seja liberto e posto na fronteira. Em 1967 o Papa Paulo VI visita o santuário de Fátima, a irmã Lúcia e condecora o director da PIDE. Fotos, factos, fados… Amália continua a cantar os poetas esquerda: Ary dos Santos, Manuel Alegre, O’Neill, David Mourão-Ferreira. Em 1968 o ditador Salazar cai da cadeira de lona em que descansava. Incapacitado é substituído pelo professor universitário Marcelo Caetano. A PIDE encerra temporariamente o Instituto superior Técnico. Em 1969 eleições em que concorrem pela primeira vez os movimentos democráticos MDP/CDE e CEUD que representam as duas facções mais importantes dos opositores ao regime. Fraude eleitoral. Deputados da chamada Ala Liberal são eleitos para a nova Assembleia Nacional. Onda de greves em todo o país. Em 1969 Amália é condecorada por Marcelo Caetano na Exposição Mundial de Bruxelas. Início de uma grande digressão à antiga União Soviética. Mais uma vez a sua voz peculiar, deslumbra. Amália nunca fica maravilhada com o que lhe acontece. É sempre igual a si mesma. Terá sempre uma atitude displicente em relação aos seus êxitos e ao seu talento. Nunca guardará nada relacionada com a sua carreira artística: «Passei a minha vida a surpreender-me com o que me aconteceu, mas nunca lutei, como nunca sofri para conseguir fazer alguma coisa, para o que se chama vencer, talvez não tenha gozado bem as coisas por que passei. Embora saiba que a única artista portuguesa conhecida no estrangeiro seja eu». 1971: Zeca Afonso grava para a editora Arnaldo Trindade o disco Cantigas de Maio que inclui Grândola, Vila Morena. Em Paris Amália visita Alain Oulmain e conhece pessoalmente Manuel Alegre que, convalescente de uma doença, encontra-se escondido em casa do seu amigo. Início de uma grande amizade e colaboração. Manuel Alegre confessa que ficou um pouco atrapalhado. No exílio, em Argel, ouvia os seus discos e «sentia um bocado de Portugal comigo, porque no fundo, ninguém como ela exprime o que defino por a nossa atlanticidade, essa forma melancólica e nostálgica que é a saudade.» Quando se emociona, canta de modo tão intenso que chora. «Uma vez num barco, em Vila Franca, à noite cantei aquela música do Fado Cravo que as pessoas se ajoelharam aos meus pés. Ajoelharam-se porquê? Porque senti uma emoção muito grande. (…) Nem sei como chamar a isto. Talvez eu não seja criadora, mas quando canto estou a inventar. E, para inventar, preciso de música. O fado quando comecei era amarrado como se tivesse uma só divisão e a minha maneira de cantar deu-lhe mais duas casas. Porque nada dentro daquela divisão me deixava fugir. A minha voz queria fugir dali, mas batia na porta. Tive que cantar à minha maneira.»
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Nos anos 60 o Turismo foi uma das industrias mais agressivas em Portugal. Exportava a imagem de um país de brandos costumes (embora há anos em guerra) do Avril au Portugal - país do sol (embora em Abril águas mil), do Fado, o Futebol e Fátima. São estes os Fs que sustentam o Fascismo salazarento. Amália é assim conotada com um dos Fs e, por isso, mal tratada por alguns militantes da esquerda mais radical (alguns deles emigrarão mais tarde para partidos de direita). Muitos desconhecem a sua generosidade e até a sua contribuição para a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos durante o fascismo, «da mesma forma apaixonada e talvez ingénua com a qual agradeceu aos donatários salazaristas que lhe proporcionaram, a ela, rapariga do povo, os palcos, os microfones» escreve o deputado comunista Rubens de Carvalho. Amália volta a cantar Mãe Negra, embalando o filho branco do senhor…, que cantara nos anos sessenta em Angola e Moçambique. Incluída na lista de canções malquistas pelos censores do regime de Salazar, esta canção faz parte do cancioneiro da resistência ao regime. Já durante a revolução democrática e nacional do 25 de Abril canta o Fado de Peniche. No Teatro Vasco Santana participa com o actor, advogado e comunista Morais e Castro, em sessões de esclarecimento sobre o 25 de Abril sobre a situação dos artistas de espectáculo. A democracia portuguesa acaba por lhe prestar as maiores e mais sinceras homenagens. Em 1980 é condecorada com o grau de oficial da Ordem do Infante D. Henrique pelo então presidente da República Mário Soares que a considera «uma mulher conservadora, crente e naturalmente apolítica mas que soube conviver bem com a Revolução dos Cravos». Ela própria lhe disse que a diferença entre «vocês e os de antigamente, é que vocês sentam-me à vossa mesa. Os outros recebiam-me muito bem, gostavam muito de mim e de me ouvir cantar, mas era diferente, só era recebida no fim, para cantar». Sempre gostou de fazer versos: «coisas que sentia», reconhecendo que não é poeta. Lança o disco com poemas seus Gostava de Ser Quem Era. Em 1997 edita o Livro Versos, confirmando a sua veia poética: «Ai minha infância dorida/ Ai o meu bem que não foi/ Ai minha vida perdida/ Ai lucidez que me dói» Os seus versos são ecos empolgantes da sua voz, única, remanescente popular da poética eivada de lirismo e da atracção pela morte: «Vem morte que tanto tardas / Ai como dói / A solidão quase loucura». É homenageada pela Câmara Municipal de Lisboa. Lança um disco de inéditos Segredo. Vive com dificuldades económicas, o que a obriga a desfazer-se de algum do seu património imobiliário. Morre a sua grande amiga a pintora Maluda 1999. Fica profundamente pesarosa. Já antes vira desaparecer o seu marido César Seabra, o seu compositor Alain Oulmain e o seu poeta David Mourão-Ferreira que a considerava como «a voz da diáspora e voz do terroir (chão), voz da distância e da intimidade, com a amplitude das mais altas vagas e a tocante descrição de recolhidos santuários». |
| São Bento é um bairro antigo de Lisboa em que se misturam odores tradicionais com outros vindos de paragens mais distantes, de Cabo Verde. Do alto das escadarias, guardadas por dois leões, ergue-se um edifício de traços clássicos, o Parlamento. Seguindo rua acima, do lado esquerdo mora Amália numa casa pombalina de sorridentes e floridas balaustradas. Quando ela passa com aquele ar melancólico que a caracteriza, o seu sorriso contagiante ilumina todos. Amália gosta de cantar na rua: «Quando canto escuto-me, e quando me escuto acabo a chorar». O mercado, a padaria e o comércio tradicional, são pontos de encontro das gentes simples. Uma vizinha fala da sincera preocupação de Amália para com os mais necessitados: «chegou a atravessar problemas financeiros de tanto dar». Agora na casa amarela de S. Bento mora o silêncio. Na varanda encontra-se ainda pendurada uma toalha branca, símbolo solidário com o povo de Timor. Em todas as janelas e varandas, à passagem do féretro, de S. Bento à Estrela, toalhas brancas, estendidas. O coração de Lisboa chora. Flores, lenços brancos acenam. Nas ruas, nos carros, nas lojas, por todo o lado o fado de Amália. Dor e saudade, o âmago alfacinha, trespassam. Seis da tarde. Suave melancolia, Lisboa. Largo da Estrela, a grande Basílica prevalece. Centenas de pessoas, as escadarias ocupam. Tocam os sinos. O féretro da Amália chega. Emoção geral. Nunca a multidão à solta teve tanta grandeza. Homens, mulheres, crianças, imagens sobrepostas, redondas e volumosas, dissolvem. Caras lampejadas, cabeças reluzentes, cabelos de cor nem loira nem escura, na Basílica entram. Não se distingue o novo do velho, o bonito do feio. A idade e o gesto, afirmam. Tudo se neutraliza: tempo, pessoas, coisas. Na nave central, Amália. Tudo perde o seu relevo, tudo entra em nós… Uma mulher e um ramo de margaridas brancas, esperam. O adeus à «melhor embaixadora de Portugal no mundo». Uma outra pesarosa, sussurra: «É uma parte da nossa vida que está ali. Ela é a referência da nossa mocidade». Apesar do frio que se faz sentir ao fim da noite, há quem não arrede pé. Aguarda-se pacientemente a sua vez para chegar junto ao caixão. Choro miudinho de mulheres. Espuma dos dias, milhares de pessoas, adeus à «diva do fado». Fuga ao olhar atento da polícia: o último beijo, o último toque. Um jovem diz que não gosta de fado, «mas ouvi-la cantar arrepia-me». Amália descansa na paz do Senhor «mesmo que ele não exista, eu acredito nele». Outono de 2000. Luminosidade morna das tardes de Lisboa. Jardim do Príncipe Real. O Grande Cedro exala aromas. Velhos reformados jogam às cartas. Velhas alcoviteiras, dormitam. Crianças brincam. Mulheres de pálpebras semicerradas, vigiam. Num ramo pendurado está um rádio tal qual pássaro feito. Ouve-se a voz de Amália: «Estranha forma de vida¯¯¯». |